Segundo o SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros), em 2020 foram vendidos 41,9 milhões de livros no Brasil — 37 mil a mais do que no ano anterior.
Os números parecem elevados, mas a realidade em um ano marcado pela Covid-19 foi a de livrarias de rua em dificuldade de migrar para o e-commerce e as duas gigantes do setor (Cultura e Saraiva) fechando dezenas de unidades.
Em meio a esse cenário sombrio, Ricardo Almeida, CEO do Clube de Autores, viu as vendas da sua startup de autopublicação on demand crescerem 55%. A pandemia, a aceleração do mercado digital e a quebra da Cultura e Saraiva formaram uma “tempestade perfeita” que favoreceu o negócio.
“Foi um ano totalmente tenebroso, mas tivemos uma aceleração da cultura digital. Com isso, os leitores que eram acostumados a comprar em livrarias encontraram suas portas fechadas e tiveram que buscar outras alternativas”
No Clube de Autores, qualquer pessoa a fim de publicar um livro pode realizar esse sonho em poucos passos — e gratuitamente.
COMO FUNCIONA O CLUBE DE AUTORES
Cabe ao autor definir as características do seu livro. O processo começa com a simulação do preço de capa, uma etapa automática baseada no valor que o autor deseja receber (lembrando que uma quantia alta demais joga o preço para cima e pode tornar o livro menos “vendável”) e nos dados técnicos da obra.
Por “dados técnicos”, leia-se: número de páginas, tipo de publicação (ebook, livro impresso ou ambos), formato (A5, pocket ou A4), tipo de encadernação (brochura ou espiral), coloração (preto e branco ou colorido), tipo de papel (offset, pólen e couchê) e a gramatura.
O Clube ganha na venda do livro, que pode ser vendido apenas em seu site ou também em marketplaces como Amazon, Estante Virtual, Mercado Livre, Google Play e Americanas.com — distribuir ou não a obra nos marketplaces é uma decisão do autor.
SURGIR “ANTES DO TEMPO” QUASE INVIABILIZOU O NEGÓCIO
O Clube de Autores foi fundado há 12 anos por Ricardo, Indio Brasileiro Guerra Neto e Anderson de Andrade.
Na época, 2009, apostar na venda de livros por demanda parecia uma estratégia um tanto arriscada. “No primeiro ano, a maior dificuldade foi com as gráficas. Não existia no Brasil uma operação que imprimia um livro por vez.”
Convencer as gráficas de que o negócio era viável foi o primeiro desafio. Ricardo conta que eles tiveram de acordar um valor mínimo que seria pago previamente, independente do volume de impressões.
“Rapidamente chegamos ao valor [combinado], e teve um determinado ponto em que começamos a receber uma enxurrada de pedidos”
Logo veio também a enxurrada de reclamações: leitores queixando-se de encadernações mal formatadas e até mesmo impressas de ponta cabeça.
Os sócios pensaram em desistir. Por sorte, no mesmo dia Ricardo recebeu um e-mail de uma rede de gráficas interessada em imprimir para o Clube — e prometia dar conta daquele modelo de negócio.
“Era uma quinta-feira: li a mensagem e decidi ligar para o pessoal do contato. Perguntei se poderia passar todas as impressões que a gente tinha em dois dias. Responderam que sim.”
O resultado? “Fechamos negócio e trabalhamos com eles até hoje!”
DUAS GRANDES EDITORAS NAUFRAGARAM NO SETOR DE AUTOPUBLICAÇÃO
Ao mesmo tempo, o trio de sócios via empresas maiores tentando entrar no nicho de autopublicação. Foi o caso da editora Ediouro, com o selo Universo do Autor, e da Saraiva, com o Publique-se.
Numa Bienal do Livro, Ricardo chegou a visitar o estande de uma delas. Só o número de exemplares levados para o evento seria capaz de sustentar a operação do Clube por dois anos…
Mesmo assim, aqueles selos concorrentes acabaram naufragando e as duas editoras pularam fora do mercado de autopublicação. Ricardo avalia:
“Acredito que por terem tiragens de milhares de exemplares por título, essas editoras não davam tanta atenção para um modelo de escassez, que é o modelo de impressão sob demanda. Morreram pela falta de atenção dada aos autores”
Enquanto outros players chegavam, o Clube de Autores sobrevivia no boca a boca, sem investir em marketing.
O DESEJO PELA PUBLICAÇÃO FOI A MAIOR MOTIVAÇÃO DO NEGÓCIO
Segundo o CEO do Clube de Autores, ele e os sócios já trabalhavam com internet, tiveram livros lançados por editoras — e não entendiam a lógica de ter que pagar para contar uma história.
“Um autor deve ter, na pior das hipóteses, o quadro [a possibilidade] de não ganhar nada com o livro. Mas não pode gastar uma fortuna para contar uma história…! E, na melhor das hipóteses, obviamente ele deveria ganhar uma fortuna”
Desta forma, empreenderam em cima de uma ideia que parecia fazer sentido para eles: criar uma plataforma que permitiria a qualquer pessoa se autopublicar.
A TECNOLOGIA PERMITIU AUTOMATIZAR TODO O PROCESSO
Atualmente, quando o Clube de Autores ou um marketplace aprova a compra de um livro, o banco de dados aciona a cadeia de produção com a gráfica e a entrega, fechando o ciclo em dez dias ou menos.
A impressão ocorre entre três e sete dias úteis; a entrega é feita em seguida pelos Correios.
“A tecnologia me ensinou sobre a necessidade de economizar recursos. Quanto mais se automatiza o processo, mais fácil é fazer o negócio sobreviver”
Com 40 livros novos publicados todos os dias, a plataforma conta apenas com cinco funcionários. Ser enxuto é uma vantagem que a tecnologia proporciona — e que, segundo o empreendedor, ainda não foi bem compreendida por muitas empresas, principalmente pelas livrarias.
“Venho da publicidade tradicional, mas há tempos migrei para o digital, onde aprendi que não existe nada impossível”, diz Ricardo. “Quando se trabalha com tecnologia e modelos de negócios diferentes, aprendemos que para tudo se dá um jeito. Isso acabou sendo uma semente para o próprio Clube de Autores”.
PUBLICANDO 27% DOS LIVROS LANÇADOS NO PAÍS EM 2020
Com uma média de mil livros publicados por mês, o Clube de Autores afirma ter chegado à marca de 72 mil títulos. Cerca de 15 mil deles teriam vindo à luz durante a pandemia. Ao todo, a platataforma soma 57 mil autores publicados.
Para Ricardo, entre as causas desse crescimento estão o movimento do digital e o surgimento de novos autores. O empreendedor entende que nunca se escreveu tanto quanto hoje — e vê a autopublicação como o caminho do futuro.
“Os novos clássicos que as pessoas vão falar daqui a 100 anos vão nascer de autopublicação”
A última edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” (de 2020, referente a 2019) apontou que o brasileiro lia uma média de 4,95 livros por ano. Ricardo acredita que, com mais autores e leitores (a população cresceu e soma hoje 211 milhões de habitantes), o aumento do consumo de livros seja um caminho natural.
“O ponto é que o mercado não é mais monopolizado pelas livrarias. Os próprios autores podem vender, e ainda tem as plataformas de assinaturas e outros modelos como o audiolivro.”
SERVIÇOS COMO REVISÃO E DIAGRAMAÇÃO SÃO COBRADOS À PARTE
Um dos desafios da autopublicação é levar ao livro uma maior qualidade, como uma editora tradicional normalmente oferece.
Para atender a esta demanda, o Clube de Autores criou em 2010 o site Profissionais do Livro, com uma série de serviços como revisão de texto, diagramação, produção da capa e o registro de ISBN junto a Câmara Brasileira do Livro.
Os clientes são os próprios autores do Clube. Uma capa custa 540 reais; a revisão (por cada lauda de 2 100 caracteres com espaço) sai por R$10,35.
Prestados por freelancers, os serviços hoje representam menos de 2% da receita da empresa (e, segundo Ricardo Almeida, ainda deverão passar por uma reestruturação, para incrementar a qualidade e reduzir o custo).
O PAPEL DA AUTOPUBLICAÇÃO NO CAMINHO DO FUTURO
Talvez a principal causa para o aumento da autopublicação seja, simplesmente, a facilidade de se publicar um livro.
Especialmente para um novo autor, muitas vezes esse é o único caminho. E o mercado vem crescendo rapidamente em vários países.
No Canadá, a plataforma de autopublicação Wattpad anunciou em abril que o programa Wattpad Paid Stories gerou, em dois anos, mais de 1 milhão de dólares em ganhos para o conjunto de 550 autores independentes.
O Kindle Direct Publishing (KDP), plataforma de autopublicação da Amazon, afirma que, dos 100 livros que mais venderam no Brasil no ano passado, 30 foram de autopublicação. Até o bestseller (e imortal da Academia Brasileira de Letras) Paulo Coelho já publicou na plataforma.
O Clube de Autores tem expectativa de crescer de 50% a 70% em 2021. Segundo Ricardo:
“A autopublicação já é uma realidade no mundo inteiro. Temos mais de 40% de direitos autorais pagos nos Estados Unidos em livros auto publicados”
E a maior parcela desse crescimento, na plataforma, vem ocorrendo com a venda de livros impressos — entre janeiro e abril de 2021, eles representaram 85% das vendas do Clube dos Autores, contra 15% dos ebooks.
PARA O EMPREENDEDOR, AS LIVRARIAS PRECISAM SE REINVENTAR
O prazer que leva leitores a percorrerem os corredores de lojas físicas, que historicamente dominaram o mercado, vem sendo impossibilitado durante a pandemia. Em 2019, a pesquisa “Retratos da Leitura” aponta que 46% das vendas de livros ocorriam em livrarias, contra 20% em livrarias online.
“Agora o jogo mudou”, diz Ricardo. “As livrarias entraram em crise e ainda vivem na lógica da década de 80, mas não podem mais impor as regras que as interessam.”
O empreendedor cita a venda por consignação e o que ele considera como margens altas cobradas pelas grandes livrarias como políticas que não dão mais certo.
“As livrarias têm futuro, mas precisam se reinventar. Às vezes elas não têm o livro que o leitor busca e ‘empurram’ três dias para ele voltar e buscar na loja. Atualmente, se você comprar no Mercado Livre, este livro pode chegar na sua casa até mesmo no dia seguinte. Não vejo hoje muito sentido no modelo de estoque físico”
O que o mercado digital como um todo vem demonstrando é que é mais fácil se manter sem os altos custos das estruturas físicas (juntas, as livrarias Cultura e Saraiva acumularam quase 1 bilhão de reais em dívidas).
Especialmente em um momento em que a Receita Federal argumenta que os livros deveriam perder a isenção tributária, a redução de custos se torna uma demanda ainda mais urgente.
UMA COLETÂNEA SOBRE A QUARENTENA AJUDA MÉDICOS VOLUNTÁRIOS
No início da pandemia, o Clube promoveu um concurso convidando autores a relatar — literariamente — as suas experiências com a Covid-19. Foram centenas de histórias recebidas falando de medos, dores, esperanças… Uma coletânea de 39 delas foi reunida no livro Crônicas de Quarentena, com 39 histórias.
A cada venda realizada, o valor é automaticamente transferido para ajudar a Missão Covid, uma iniciativa de médicos voluntários que atende gratuitamente pessoas com sintomas de Covid-19. Segundo o site oficial, são 95 mil pacientes atendidos e 1 500 médicos cadastrados.
“Um dos médicos fundadores da Missão Covid era meu vizinho de cima”, diz Ricardo. “Acho o trabalho deles fabuloso. Já usei o serviço e recomendo.”
Foi em Herculano, na Itália, que Roberto Borges pediu Régis Mikail em casamento. A cidade soterrada pelo vulcão Vesúvio hoje dá nome à Ercolano, editora do casal que garimpa obras esquecidas para uma nova geração de leitores.
O Brasil é um país de leitores? Tainã Bispo acredita que sim. Ela migrou de carreira, criou duas editoras independentes (a Claraboia, que só publica mulheres, e a Paraquedas), um selo editorial e um serviço de apoio a escritores iniciantes.
“Mais livros, menos farmácias”: como um grupo de uma centena de amigos – na maioria, profissionais da saúde – se uniu em torno desse mantra e do amor pela literatura para pôr de pé a Casa 11, onde o lucro importa menos que o propósito.